O evento "Poemas das Portuguesa: a voz e a alma das poetas lusas na memória das mulheres emigrantes portuguesas em Hamburgo" foi idealizado por Luisa Pais Lowe com o objetivo de homenagear a comunidade portuguesa em Hamburgo, nomeadamente as mulheres emigrantes, através da memória poética que é parte essencial da identidade (da "alma").
A primeira parte do título do evento refere-se ao livro de poemas da autora inglesa Elizabeth Barrett Browning Sonnets from the Portuguese, publicado em 1850, e escrito entre 1845-46 durante o período em que a poeta conheceu o futuro marido, o também escritor Robert Browning. Só mais tarde partilharia com ele esses poemas de foro íntimo e, para se protegerem da curiosidade do público vitoriano da época, resolveram publicar o volume com um título que, no entanto, se referia à autora, que era de estatura pequena e tinha cabelos e olhos escuros, e a quem o marido chamava "my little Portuguese".
No evento, que teve lugar a 14 de dezembro de 2015 às 17,30h, seis portuguesas, incluindo a Senhora Cônsul Geral de Portugal em Hamburgo, Drª Luisa Pais Lowe, apresentaram e leram poemas de autoras portuguesas que as acompanharam na emigração para a Alemanha. No final dialogaram com o público, que colocou questões e fez perguntas.
A sessão teve o apoio do Camões, I.P. e foi organizada em parceria com o Centro de Língua Portuguesa - Camões da Universidade de Hamburgo, e com o restaurante-galeria Nau, no Bairro Português de Hamburgo.
O Embaixador João Mira Gomes esteve presente neste evento sobre poesia no feminino num contexto migratório, incluído na sua primeira visita oficial a um Estado Federado alemão, entre 13 e 15 de dezembro de 2015. Na receção que se seguiu, com prova de vinhos e iguarias portuguesas, o Senhor Embaixador conversou com membros da comunidade portuguesa de Hamburgo e de outros estados da área consular de Hamburgo, em especial Bremen, Schleswig-Holstein e Baixa Saxónia.
(Vd. texto da página do Facebook da Embaixada de Portugal em Berlim, Alemanha, de 18 de dezembro de 2015)
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Aspeto inicial do público do evento |
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SE Embaixador de Portugal em Berlim, João Mira Gomes
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A escolha de Ana (Sophia de Mello Breyner Andresen, "Ítaca")
A escolha de Ana
Ana Maria Delgado, Responsável pelo Centro de Língua Portuguesa e Leitora do Camões, I.P. na Universidade de Hamburgo, veio para a Alemanha, pela sexta vez, em 2012.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Ítaca
Quando as luzes da noite se reflectirem imóveis nas águas verdes de Brindisi
Deixarás o cais confuso onde se agitam palavras passos remos e guindastes
A alegria estará em ti acesa como um fruto
Irás à proa entre os negrumes da noite
Sem nenhum vento sem nenhuma brisa só um sussurrar de búzio no silêncio
Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos
Quando o barco rolar na escuridão fechada
Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar
Porque esta é a vigília de um segundo nascimento
O sol rente ao mar te acordará no intenso azul
Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem como as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto
In Geografia, 1967 |
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A escolha de Adelina (Regina Correia, "Neste lugar onde já não estás")
A escolha de Adelina
Adelina Sedas, assistente social, veio para a Alemanha em 1964 e pertence à primeira geração de portugueses neste país, sendo uma referência cultural incontornável em Hamburgo.
Regina Correia
Neste lugar onde já não estás
Neste lugar onde já não estás
eis o sol tomando a hora do assombro
lugar de incêndio em tons de verde
o olhar vidrado das raparigas.
Ei-las de novo fogo e maré
no furor do gesto, no ondear da tarde,
na cadência alada de cada passo
que a cidade acolhe em sobressalto.
Eis o poente esvaído em chama
sobre a montanha, por sobre as águas
bendito leito de aves regressando a
este lugar onde já não estás.
Eis a inocência louca dos amantes
agora solta em cada corpo ardendo
na paixão febril e imprevista
no dorso aveludado do anoitecer.
Eis o tumulto, eis a sedução
no róseo esplendor da magnólia
coroando o despertar da terra
neste lugar onde já não estás.
E eis-me tangencial à morte
só abandono e sombra, quase volátil
porque já não estás neste lugar
onde fomos ave, quimera, sagrado canto.
In Sou Mercúrio, Já Fui Água, 2001
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A escolha de Filipa (Maria Guiomar Ávila, "Quando a saudade vem")
A escolha de Filipa
Filipa Baade, professora de Português e membro da Direção da Associação
Luso-Hanseática de Hamburgo, veio para a Alemanha em 1968.
Maria Guiomar Ávila
Quando a saudade vem
Quando a saudade vem, inesperada,
Nasce uma doce luz no meu olhar:
Luz de ocaso caindo sobre o mar
Da minha vida triste, amargurada.
Quando a saudade vem, já não há nada
No coração que fique por lembrar.
Tudo dizemos mesmo sem falar
E esse silêncio é paz abençoada.
Quem poderá dizer o que é saudade?
A nostalgia da felicidade…
Talvez recordações de uma emoção…
O tempo, a pouco e pouco, vai passando
E a saudade lá vem, de quando em quando,
Aninhar-se no nosso coração.
In À Janela da Vida, 1998
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A escolha de Alexandra (Ana Luísa Amaral)
A escolha de Alexandra
Alexandra Schmidt, filóloga e professora de inglês e alemão, nasceu em Hamburgo, filha de pais portugueses, representando a segunda geração de emigrantes. Depois de 20 anos em Portugal, voltou para a Alemanha em 2011.
Ana Luisa Amaral
Lugares Comuns
Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós que há cafés manhosos, os ingleses também, e eles até tiveram mais coisas, agora é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas ilhotazitas, mais adiante)
Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar de praia (isto é só para quem não sabe fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.
Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate (se fosse em Portugal era sandes de queijo), mas pensei: Estou em Londres, estou sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses até nem se metem como os nossos, e por aí fora...
E lá entrei no café manhoso, de árvore de plástico ao canto. Foi só depois de entrar que vi uma mulher sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte. Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e depois eu
Lá pedi o café, que não era nada mau para café manhoso como aquele e o homem que me serviu disse: There you are, love. Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois pensei: Já lhes está tão entranhado nas culturas e a intenção não era má, e também vou-me embora daqui a pouco, tenho avião quero lá saber
E paguei o café, que não era nada mau
e fiquei um bocado assim
a olhar à minha volta
e a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
Como quem me diz: That´s it
e olhou assim à sua volta para
o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte
E pensei que afinal não interessa
Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são.
In Coisas de Partir, 1993
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A escolha de Salomé (Maria Teresa Horta, "Pequena cantiga à mulher"))
A escolha de Salomé
Salomé Andrade-Pohl, economista a trabalhar na área de gestão e
marketing, veio para a Alemanha em 2006.
Maria Teresa Horta
Pequena cantiga à mulher
Onde uma tem
O cetim
A outra tem a rudeza
Onde uma tem
A cantiga
A outra tem a firmeza
Tomba o cabelo
Nos ombros
O suor pela barriga
Onde uma tem
A riqueza
A outra tem
A fadiga
Tapa a nudez
Com as mãos
Procura o pão
Na gaveta
Onde uma tem
O vestígio
Tem a outra
A pele seca
Enquanto desliza
O fato
Pega a outra na enxada
Enquanto dorme
Na cama
A outra arranja-lhe
A casa
In Cronista não é Recado, 1967
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A escolha de Luísa (Fiama Hasse Pais Brandão, "Do amor IV")
A escolha de Luisa
Luisa Pais Lowe, diplomata, Cônsul Geral de Portugal em Hamburgo,
veio para a Alemanha, pela terceira vez, em 2013.
Fiama Hasse Pais Brandão
Do amor IV
Esta vista de mar, solitariamente,
Dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas,
me dariam riso e bálsamo.
A arte da Natureza pede
o amor em dois olhares.
In As Fábulas, 2002
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Perguntas do público |
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Adelina e Filipa |
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Alexandra e Salomé |
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Momentos de partilha e boa disposição |
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Convívio e prova de vinhos e petiscos portugueses no restaurante-galeria Nau |
Fotografias gentilmente cedidas por Glyn Lowe in: