Sunday, August 15, 2010


O filme Contraluz de Fernando Fragata e o "princípio da sincronicidade" de C. G. Jung










Estreou a 22 de Julho o filme de Fernando Fragata Contraluz, o primeiro filme português filmado em Hollywood. O sucesso que tem tido deve-se, dizem alguns espectadores, a um ritmo que identificam como americano. O próprio realizador afirmou, em entrevista à RFM no dia da estreia em Portugal, que se trata de um filme próximo da ficção científica e da série de televisão Twilight Zone, que narrava episódios sobre a condição humana quando confrontada com acontecimentos invulgares. As personagens de Contraluz estão em situações existenciais graves, mas algo de inesperado lhes acontece que muda as vidas delas. Fernando Fragata acentua, porém, que é também a força dessas personagens e a vontade delas de mudar as suas vidas que acabam por ser determinantes. No que se segue proporei uma leitura de Contraluz a partir do "princípio da sincronicidade" de C. G. Jung, de que o filme parece ser uma brilhante demonstração.


O título Contraluz, Backlight em inglês, é desde logo explicitado no trailer do filme: "Nem sempre a luz (leia-se a razão) revela o melhor caminho" e "Todos caminhamos em direcção à luz (leia-se uma outra dimensão numa vida após a morte). Até lá, vive em contraluz". Quando vi o filme, pensei primeiro que o título se referia à longa sequência inicial, no decurso da qual a personagem interpretada por Joaquim de Almeida fica encadeada pela muita luz do dia ao sair de casa durante longa crise existencial. Mas um título pode apontar para vários níveis de significado. "Contraluz" é claramente uma proposta de compreensão da vida humana através de uma razão outra. Penso ter encontrado uma semelhança muito grande da proposta do filme de Fernando Fragata com o "princípio de sincronicidade" tal como proposto por Jung pela primeira vez em 1929 (levaria ainda 21 anos a concluir a obra Sincronicidade, um princípio de relações não-causais). Diferentemente do princípio da causalidade, que liga eventos através de uma relação necessária de causa e efeito, o princípio da sincronicidade liga eventos através da simultaneidade ou coincidência e do significado. Este princípio serviria para explicar fenómenos raros e aleatórios, como eventos ligados não pela sequencialidade / causalidade, mas pela coincidência. Jung chama a estes eventos "sincronicidade" ou "coincidências significativas", como por exemplo a ocorrência de dois eventos que coincidem de modo significativo para quem os viveu, sugerindo um padrão subjacente. Jung define este padrão através dos conceitos de "arquétipo" e de "inconsciente colectivo". Quer um quer outro dos conceitos está ligado às camadas profundas da psique humana e a imagens ou materiais primordiais que formatam e servem de matriz ao desenvolvimento psicológico. Sincronicidade não é o mesmo que coincidência tout court, pois não depende apenas de circunstâncias aleatórias, mas antes desse padrão subjacente e dinâmico que se manifesta através de eventos significativos.
Contraluz propõe igualmente uma razão outra para compreender também com insight, com intuição, os nossos destinos humanos, por vezes tão difíceis de apreender usando apenas a razão fria. A sincronicidade é um conceito com o qual se tenta explicar aquilo que escapa à explicação causal. Jung propõe que se substitua a tríade tempo / causalidade / espaço, pela tríade alternativa tempo / causalidade ou sincronicidade / espaço. O filme de Fernando Fragata encena destinos de várias personagens, ligados uns aos outros antes mesmo de se encontrarem. O ritmo de narração do filme provém desta circunstância e não de qualquer utilização de cenas típicas dos filmes de acção americanos, cheias de barulho e confusão. Aqui assistimos mesmo ao curioso facto de serem as cenas de mais elevado teor dramático as cenas mais lentas do filme, filmadas ao ralenti, como se fosse necessário tempo para compreender e apreender a mais dramática das situações humanas - o que se perde em velocidade cega ganha-se em intensidade dramática e em capacidade de acompanhar o movimento de uma cena. Neste sentido, o cinema de Fernando Fragata cria o seu próprio ritmo, certamente em contraluz em relação a um certo cinema americano, com o qual não deve ser confundido.
A identidade lusa do filme é assegurada pela assinatura no interior do filme através das canções portuguesas que a dona do motel no deserto ouve, nomeadamente Agulha e Dedal. Apesar das belíssimas paisagens dos desertos serem bem americanas (até porque a universalidade é uma das características que nos definem como portugueses no nosso melhor). A beleza deslumbrante das paisagens serve para nos fazer ver a amplitude dos destinos humanos, sempre que temos força para os aceitar e desenvolver. Estas personagens lutam pelas suas vidas, mesmo se por vezes não percebem com a razão fria qual o caminho a seguir. O filme está todo ele construído a partir do destino / itinerário (destination) de uma das personagens, e suspende a narração quando entra em cena uma nova personagem, para seguir o caminho que a levou até aquele encontro, e por aí adiante até ao desenlace final em que todos os destinos / percursos se encontram.
Curiosamente, sem se referir a Jung ou ao princípio de sincronicidade, o realizador Fernando Fragata fala, na entrevista à RFM, a propósito do elemento de suspense do seu filme, de uma coincidência que lhe aconteceu durante os dois anos em que trabalhou no filme. Vivendo entre Lisboa e Los Angeles, encontra em LA casualmente um português, de S. Pedro do Estoril como ele, mas que não conhecia. Trata-se do compositor Nuno Maló, que viria a compor a música para Contraluz. Outra "coincidência significativa" ou sincronicidade?
Interessante será ainda observar que as personagens recebem mensagens através de meios tecnológicos: o GPS da sequência inicial, que orienta a personagem para o seu destino (destination), o que é tanto mais estranho porque o aparelho está avariado; um telemóvel achado por acaso na rua, e que propicia mensagens de sobrevivência para cada dia; e uma máquina fotográfica que parece garantir o regresso ao presente e à vida. Esta ideia de a tecnologia poder ser um canal de transmissão de mensagens vindas de uma outra dimensão é muito comum na literatura sobre experiências paranormais.
Resta falar dos excelentes diálogos - este é um filme em que as relações humanas são muito importantes - e com um apurado sentido de humor. "Há sempre uma esperança, mesmo no limite do desespero", é a mensagem do filme, segundo o realizador. Faz-me lembrar uma frase muito parecida, que foi um dos slogans do movimento de Maio de 1968 em França, uma citação de Walter Benjamin: "Só os desesperados nos podem trazer a esperança". Mais uma razão para ver este excelente Contraluz e dar os parabéns ao seu realizador, acompanhados por votos de mais trabalho desta qualidade.
Uma nota final de agradecimento à minha querida amiga Isabel Sampaio, que me chamou a atenção para o princípio de sincronicidade de C. G. Jung a propósito deste filme.