Friday, June 11, 2010





Prazeres




O primeiro olhar da janela de manhã
o velho livro de novo encontrado
rostos animados
neve, o mudar das estações
o jornal
o cão
a dialéctica
tomar duche, nadar
música antiga
sapatos cómodos
compreender
música nova
escrever, plantar
viajar, cantar
ser amável



Bertolt Brecht, Prazeres, Vergnügungen (1954)


Tradução de Paulo Quintela
Imagem e créditos: Henri Matisse, Open window. Collioure (1905), National Gallery of Art, Washington, D.C.
allposters.de




In-Between







E tinha eu tantos planos
para escrever coisas bem
definidas e concretas

A poesia foi
o que me aconteceu
no intervalo

A cronista de serviço
pede desculpa pela interrupção
e volta dentro de momentos


(9.5.2010)



Imagem e créditos: Ló, Quiosque do Tivoli (Centro Português de Serigrafia, 2003)

Wednesday, June 9, 2010

Serge Reggiani chante Boris Vian Je voudrais pas crever...

Felix Mendelssohn Bartholdy - Die Hebriden / Hebrides Overture ("Fingal'...






O sentido de Ítaca, relendo sempre Constantino Cavafis



Ítaca


Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado - não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria - nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes o quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.


Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.


Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.


Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.




Tradução de Jorge de Sena
Imagem: Paul Klee, High Spirits
(allposters.de)

Sunday, June 6, 2010






O café segundo J. S. Bach (I)




Sabe-se quão profundamente a cidade alemã de Leipzig está ligada à música: aqui nasceram Clara Schumann e Richard Wagner, aqui viveram Felix Mendelssohn Bartholdy e Johann Sebastian Bach. Esta matriz musical é visível na própria fisionomia da cidade. A praça principal, o Augustusplatz, é contida nos seus amplos limites - é uma das maiores praças da Alemanha - por duas referências musicais da cidade, a ópera e a sala de concertos, o Gewandhaus de Leipzig.

À casa de Clara e Robert Schumann na Inselstrasse 18, onde o casal viveu durante os primeiros anos de casamento, e à casa-museu de Mendelssohn na Goldschmidstrasse 12 (antiga Königstrasse), onde Mendelssohn viveu e morreu, junta-se desde Março de 2010 o Museu Bach, em frente da Thomaskirche. Nesta belíssima igreja gótica foi Bach Thomaskantor, director do coro da igreja, e responsável pela música das quatro principais igrejas da cidade, e pela composição e apresentação de uma cantata todos os domingos e feriados.

J. S. Bach viveu em Leipzig desde Maio de 1723 até à sua morte em 1750 e está sepultado na Thomaskirche, na área do altar. Quem entra fica impressionado com o tamanho da abóbada da igreja, a que se deve, ao que dizem, a acústica deste espaço, e com a tensão entre a área do altar e a área diametralmente oposta, onde está situado o órgão principal, já que parece ser este o verdadeiro centro da igreja. Nos fins-de-semana e feriados há concertos à tarde e à noite, aos domingos a música é parte integrante do serviço litúrgico. Quando o recinto da igreja está cheio, a assistência é de 1.500 pessoas, e está sempre cheio. Ainda hoje a Thomaskirche é um dos centros musicais da cidade, provavelmente o mais concorrido e popular.

Bach dirigiu também, de 1729 até pelo menos 1741, o Collegium musicum, fundado por Telemann, e foi para este conjunto estudantil que escreveu alguma da sua música profana, como a Kaffeekantate. Estas composições são semelhantes, do ponto de vista da estrutura, à ópera, e ilustram a faceta mais humorística de Bach. A Kaffeekantate terá sido estreada no Café Hauss, na Katharinenstrasse 14 (o edifício foi destruído durante a 2ª Grande Guerra). Aí se davam à noite concertos que são bem prova da exigência musical da burguesia emergente na cidade de Leipzig.

Se, tal como propõe Hans-Joachim Schulze no seu livro sobre a Kaffeekantate, lermos nos objectos domésticos referidos na relação de bens deixados por Bach, após a sua morte em 1750, um testemunho da vida familiar do compositor, então a composição terá sido também uma "sinfonia domestica", já que no rol havia várias cafeteiras a comprovar como a família Bach terá apreciado beber café.


O "drama per musica" conhecido como Kaffeekantate intitulava-se originalmente Schlendrian und seine Tochter Liesgen e consta de um diálogo entre estas duas personagens, precedidas por uma espécie de apresentador / narrador que ordena aos espectadores que se calem - daí o nome desta cantata BWV 211 "Schweiget still! Plaudert nicht". O libretista foi Picander, pseudónimo de Christian Friedrich Henrici, com quem Bach costumava trabalhar (A Paixão segundo S. Mateus é o seu libreto mais conhecido). O libreto para a Kaffeekantate terá surgido em 1732. Não terá sido o único nem o primeiro a versar o tema do café: já em 1703 o compositor francês Nicolas Bernier tinha publicado uma cantata, Le Caffé, e na Alemanha tinha sido antecedido por duas outras composições, a cantata Lob des Coffee de 1716, de J. C. Krause, e uma outra cantata do café, de 1728, de Daniel Stoppe.

Duas personagens em cena, um pai muito zangado e uma filha muito persistente. O pai censura a filha por lhe desobedecer e não satisfazer o seu desejo de que ela deixe de beber café, ao que a jovem responde que não pode passar sem a sua chávena de café três vezes por dia. Não resisto a parafrasear o resto do diálogo: Schlendrian diz a Liesgen que, se ela não desistir do café, deixará de ter autorização para ir a casamentos ou passeios, ao que ela responde que está bem, desde que possa ter o seu café. O pai diz-lhe então que ela terá de passar sem aquela saia que tanto queria, e sem os adornos de prata e oiro para o chapéu, e que a proibirá de estar à janela, ao que responde que não se importa com nada, desde que possa beber o seu café. Finalmente o pai, cansado e irritado, comunica a Liesgen que ela terá de prescindir de casar. Liesgen pensa melhor e responde que, sendo assim, terá - embora muito contrariada - de dizer adeus ao café. O pai dá-lhe então licença para ter um marido.

Mas a história não acaba aqui, pois Liesgen logo faz constar por toda a cidade que o pretendente que quisesse apresentar-se teria de prometer por escrito, no contrato de casamento, autorizar Liesgen a tomar café quando ela muito bem desejasse.



(a continuar)


Bibliografia:

Hans-Joachim Schulze, Ey! Wie schmeckt der Coffee Süße. Johann Sebastian Bachs Kaffeekantate. Evangelische Verlagsanstalt Leipzig, 2006.

Imagens reproduzidas a partir do mesmo título bibliográfico, ilustrações de Christiane Knorr.